Capoeira

Introdução


“Até em cartório já ficou provado
A força que o preto no branco contém
Depois que mistura seu nome ao dela
É difícil tirar esse nome de alguém
É por isso que opreto se amarra num branco
E o branco se amarra num preto também”
(O preto e o branco, Bezerra da Silva)



Se o leitor não é capoeirista, certamente já teve dúvidas sobre a melhor maneira de referir-se ao que fazem os praticantes de capoeira. Afinal de contas eles dançam, lutam ou jogam capoeira? Naverdade a capoeira é marcada por uma forte ambigüidade que a torna ao mesmo tempo uma dança, uma luta e um jogo. E isso, como tentarei mostrar ao longo desse livro, está diretamente relacionado à sua origem que remonta aos tempos da escravidão.
Nos movimentos corporais dessa luta-dança-jogo afro-brasileira reina soberano o baixo corporal. Um capoeirista deve ser hábil, sobretudo, no uso dos pés,além de precisar ter um bom jogo de cintura. Em outras palavras, a capoeira põe o mundo literal e metaforicamente de pernas para o ar. Esse livro pretende interpretar o significado social e simbólico de tal inversão corporal.
O significado dessa manifestação cultural de raízes negras se altera conforme operam-se mudanças no lugar social do negro no interior da sociedade brasileira. Dessa forma,através da análise do processo de construção da legitimidade da capoeira, buscarei verificar como os negros conquistam a ampliação de seu espaço político no bojo das relações interétnicas no Brasil.
Embora a capoeira tenha sido objeto de investigação por parte de alguns estudiosos ao longo do século XX, tais como Plínio Ayrosa (1936), Renato Almeida (1942), Inezil Penna Marinho (1945), Albano deOliveira (1956), Waldeloir Rego (1968) e Édison Carneiro (1975), dentre outros, a produção acadêmica só recentemente voltou-se para o estudo dessa prática. A ambigüidade dessa luta-dança-jogo, ainda tão pouco estudada, permite uma abordagem diversificada. Assim pesquisas pioneiras vêm sendo empreendidas tanto do ponto de vista da antropologia, como da história, da sociologia e da educaçãofísica[1].
Meu interesse sobre o tema data de meados da década de 1980, quando comecei a aprender capoeira na Associação de Capoeira Fonte do Gravatá, num bairro de classe média da metrópole paulistana. Para São Paulo migraram, no decorrer da década de 1960, vários mestres de capoeira baianos em busca de melhores condições de vida. Alguns desses capoeiristas serão os responsáveis pela fundação da FederaçãoPaulista de Capoeira em 1974, precursora no país. Inicia-se, então, um processo de homogeneização da capoeira em todo o estado com vistas à unificação nacional dessa prática. Surgem os campeonatos paulistas de capoeira e, pouco a pouco, os mestres começam a ensinar nas universidades (nessa ocasião a capoeira é introduzida na Universidade de São Paulo, por exemplo, como uma modalidade esportivacurricular).
Porém, em contrapartida a essa iniciativa de normatização da capoeira, surgem, também em São Paulo e mais ou menos na mesma época, propostas diferentes visando ora resgatar o caráter lúdico e combativo da luta, encarada como "manifestação e expressão do povo oprimido" (Grupo de Capoeira Capitães d’Areia), ora reafirmar a origem étnica da capoeira, representando-a como "forma deexpressão de uma raça", através da aproximação entre a hierarquia vigente no panteão dos orixás do candomblé e o aperfeiçoamento dos alunos capoeiristas (Grupo de Capoeira Cativeiro). Portanto, na década de 70, com a fundação da Federação Paulista e do grupo Capitães d’Areia e, pouco mais tarde, com o advento do grupo Cativeiro em princípios da década de 80, a capoeira paulistana viverá um momento de...