Como Ler Freud, Hoje
Um livro de Michel Onfray (Le Crepuscule d’un Idole) e uma sua palestra na Casa do Saber em outubro de 2012 desencadearam uma questão dentro do nosso grupo de cinema e psicanálise. Por que tanta raiva contra Freud e a psicanálise de Freud? Será que Freud mistificou? Ele era um machista, proto-fascista e homofóbico? Que tipo de clínico ele era, que atendeu aprópria filha Anna? Um psicanalista, hoje em dia, atenderia a própria filha durante nove anos? Ao mesmo tempo, os Três ensaios sobre Sexualidade faz parte da bibliografia dos nossos encontros de cinema e psicanálise deste semestre. Então veio a pergunta: como ler Freud, hoje?
Nascemos e crescemos condicionados a acreditar que existe um campo chamado inconsciente e que ele, portanto, está alí,ou aqui, ao meu lado, dentro de mim, por trás, à minha espreita e, sobretudo, apesar de mim. E ele irrompe de modo inescapável.
Na universidade estuda-se ou se refere à psicanálise num sem número de trabalhos ligados a campos tão diversos quanto a cosmologia, a arte, a cultura e a política. Assim, pode-se dizer que a psicanálise está imbricada na nossa cultura, apesar de nós, nem queseja para motivar o Le Crepuscule d’un Idole e mesmo um outro, também de Onfray, com uma cronologia impiedosa de Freud[1].
Seria possível pensar a nossa atualidade relativizando a importância da psicanálise, como alguns tentam fazer a propósito do marxismo? Ou, a exemplo dos “maus marxistas” que deturpam a obra de Marx e a transformam numa espécie de canivete suíço intelectual, útil paratrabalhar (diz-se “criticar”) qualquer questão, o que há são apenas uns “maus freudianos”, gente apressada, preguiçosa ou apenas distraída da necessidade de pensar o nosso presente a partir das questões que se colocam na nossa atualidade, que é diferente daquela de Freud. Pois, afinal, Freud não foi um homem do século dezenove, como se costuma dizer?
Freud estaria no seu melhor “homemdo dezenove” se o tomassemos como uma espécie de flanêur do seu tempo, aquele que explorou a geografia do seu tempo e lugar e a alargou. É um flâneur que lançou olhares para além do periférico da cidade. Trata-se, sob este angulo, de olhar os escritos de Freud como um relato deste personagem: não parece que ele extraiu de si mesmo todo o resto do mundo? E assim ele se trabalhou, burilou,aperfeiçoou e sofreu por aquele mundo que era o seu. Não é possível negar este pathos do Freud artista-flâneur em tantos lugares da sua obra.
Por outro lado, Freud não apenas lançou olhares para além do periférico da cidade. A bem dizer ele estabeleceu uma arquitetônica para tais espaços, algo de fato, novo. Podemos pensar também em algo arquitetonicamente coerente, a dinâmica, o modo como seirá deslocar da cidade para os novos lugares que ele esboçou, desenhou e mesmo construiu e povoou. É claro, o seu legado é marcado por um diálogo entre “arquitetos” mais ou menos hábeis mas desejosos de por em prática estas novas cidades, e daí vem a questão: quando estamos falando da obra de Freud, hoje, não é melhor pensar como os “arquitetos” de hoje atualizam, revisam, refutam, destroem os planosde Freud? Pois, de todo modo, ao que parece, poucos estão dispostos a negar a existência destas cités ou a sua presença como parte efetiva da nova cidade.
Então, pelo menos, há isto: o alargamento de horizontes estabelecido pela psicanálise é presente, poucos estão dispostos a nega-lo (alguns irão contestar o seu alcance). Não vamos pensar aqui se/como tais novos bairros são salubresou vivos, mas apenas pensar no alargamento em si, ou seja, no olhar que a psicanálise lançou para além dos muros da cidade: vamos considerar como a psicanálise estabeleceu conceitos reguladores (os tais olhares para além dos muros da cidade). Conhecemos alguns conceitos reguladores: o ponto de fuga na pintura em perspectiva, ou Deus, que encerra os conceitos da causa primeira, do bem supremo,...
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