Do Amor E De Outras Formas Geométricas Perfeitas
Maria Angélica Melendi
Eu quase nada sei. Mas desconfio de muita coisa.
Guimarães Rosa
De milho amarelo e de milho branco se fez sua carne, de massa de milho foram feitas as pernas e os braços do homem.Unicamente massa de milho entrou na carne de nossos pais. .Popol Vuh
Uma construção afetiva
O antigo livro dos maias, Popol Vuh ou Livro do Conselho, foi escrito em quiche, usando o alfabeto latino, por um indígena desconhecido pouco anos depois da chegada dos espanhóis no Yucatan. Extraviado por quase 200 anos, foi transcrito e traduzido ao espanhol, no começo do século XVIII, pelo padre Francisco Ximénez, cuja versão é a únicaconhecida até hoje.
América Latina: Geometria Sensível, o catálogo da exposição do mesmo nome, organizada por Roberto Pontual no Museu de Arte Moderna de Rio de Janeiro, em 1978, tem como epígrafe o seguinte trecho do livro sagrado:
Dos frutos colhidos comerão os povoadores que hão de vir. Terão assim natureza igual à de sua comida. Nunca terão outra. Morrerão o dia em quecheguem a tê-la distinta[1].
Os anônimos escribas do Popol Vuh relatam com essas palavras o mandato dos Formadores para os homens que modelaram com a massa branca e amarela do milho.
No pensamento latinoamericanista do final da década de 70, a citação do Popol Vuh, que serve de epigrafe ao catálogo forma uma constelação com a frase de Oswald de Andrade: Tupy or not tupy, that isthe question, um verso de Pablo Neruda, e um belo desenho do Alto Xingu, reivindica uma especificidade formal e significativa para a arte da América Latina.
Nunca reeditado, esquecido nas prateleiras mais escuras das bibliotecas, o livro de Pontual espelha-se hoje no catálogo da exposição Inverted Utopias. Avant-Garde Art in Latin América, no The Museum of Fine Arts em Houston, comcuradoria de Mari Carmen Ramírez e Héctor Olea. Os organizadores se propõem a redimensionar o cânone do modernismo do século XX, a partir de uma leitura mais precisa da arte da América Latina, para eles, um remoto mas instigante locus de produção[2].
O conceito de geometria sensível, que já havia sido utilizado por Aldo Pellegrini e Damián Bayón , compreende, para Roberto Pontual “a junção de doiselementos à primeira vista conflitantes — geometria supõe cálculo, frieza, determinação, rigor, exercício da razão: sensível sugere imprevisibilidade, animação alternância, indeterminação, prática intuitiva”.[3] Esse aparente paradoxo resolve-se numa construção que se equilibra vicariamente na tensão entre a razão e a emoção. Diria-se que a razão estabelece as leis, monta a estrutura, determinaos limites; mas nesse ponto se detém e deixa o caminho livre para a emoção, a abertura, o acaso, o afeto, a paixão.
Geometria sensível. Recupero esse termo quase esquecido, para aproximar de uma tradição brasileira, mas também latino-americana, os trabalhos de Francisco Magalhães.
Ontbijsjte ou Bodegón: Eu e Ele
Tudo se inscreve num paralelogramo, quero dizer tudo acontecesobre o tampo retangular de uma mesa. Sobre ela — a mesa posta—, desliza a incessante areia dos dias. Com a mesma discreta elegância das naturezas mortas holandesas, com idêntica e precisa iluminação, deslocam-se, uma atrás de outra, as horas do convívio. Cada uma dessas refeições é a celebração de um encontro que se repete e se renova. O par que senta, todos os dias ante os limites do paralelogramo— na beirada da mesa— come, comunga, partilha dessas tigelas brancas, dessas panelas de barro, desses tachos de ferro.
Disse natureza morta holandesa? Melhor dizer bodegón, à espanhola, pois o que vemos é austero, silencioso, vegetal, vivo. A atmosfera das pinturas de Sánchez Cotán ressoa nesta seqüência de imagens fotográficas que se vai se construindo dia após dia, como o diário de uma...
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