liberdade e necessidade - sartre

Liberdade e História:
uma introdução à filosofia de Sartre

Luciano Donizetti da Silva

Eu construo o universal escolhendo-me; construo-o compreendendo o projeto de qualquer outro homem, seja qual for a sua época. O que o existencialismo toma a peito mostrar é a ligação do caráter absoluto do compromisso livre pelo qual cada homem se realiza, realizando um tipo de humanidade (SARTRE, 1973,p. 22).

A filosofia de Sartre é multifacetada, o que não permite uma definição simples de seu trabalho; mais: ele não se resumiu a escrever exclusivamente textos de filosofia, mas aventurou-se pelo teatro e literatura, alcançando aí notáveis resultados. E, ainda, não faltam textos nos quais questões políticas de seu tempo foram discutidas e as mazelas de sua época retratadas, o que gerou umasérie de polêmicas e disputas com intelectuais importantes da segunda metade do século XX. Para indicar algo que unifique todas as suas questões pode-se dizer que bastaria uma única palavra: liberdade. Essa é a tônica de seu pensamento desde a aurora, com a aproximação da Fenomenologia de Husserl, até seu ocaso, quando o filósofo pretendeu reconciliar seu Existencialismo com o Marxismo.
Assim,apresentar a filosofia de Sartre não é tarefa fácil, especialmente porque não há maneira segura de separar sua biografia de sua bibliografia e, menos ainda, separar o que ele publicou como texto de filosofia (obras técnicas) dos demais textos (literatura, teatro, etc.); mas se separar não é uma alternativa viável, muito mais complicado seria pretender dar conta de tudo, haja vista o trabalho colossalque resultaria dessa empreitada.1 De todo modo espera-se, ao menos, apresentar um panorama dessa filosofia a partir de uma chave de leitura única que, apesar de toda a evolução doutrinal que uma obra desenvolvida ao longo de meio século comporta, permanece a mesma.
A liberdade é o mote inicial da filosofia de Sartre. Claro que ele não pode precisar o momento em que entra na idade da razão; isso éimpossível para todos os homens. Mas o fato é que em suas memórias (Les Mots) o filósofo afirma que desde quando ele passou a se compreender como indivíduo, ele o fez livremente, e isso teria a ver com a morte prematura de seu pai: “A morte de Jean-Baptiste foi o grande acontecimento de minha vida: devolveu minha mãe a seus grilhões e me deu a liberdade. (...) Foi um mal, um bem? Não sei; massubscrevo de bom grado o veredicto de um eminente psicanalista: não tenho superego” (SARTRE, 1984, pp. 15-6). Sua vida com sua mãe e o avô, que já teria cumprido sua função repressora, teria muito a ver com tamanha inclinação pela liberdade.2
Mas a liberdade física, de fazer o que se quer com a complacência do avô e da mãe, ou mesmo a liberdade psíquica de não conviver com a castração paterna, não étudo. Na verdade, a filosofia de Sartre leva a uma noção de liberdade absoluta, pois “O homem não é primeiro para ser livre depois: não há diferença entre o ser do homem e o seu ‘ser-livre’” (SARTRE, 1997, p. 68). A liberdade coincide com o modo de ser humano e, assim, o fato de compreender-se livre ou agir livremente não são mais que consequências dessa condição primordial. A contrapartida daliberdade, a possibilidade de agir de má-fé, está sempre presente; e a biografia de Sartre, malgrado sua interpretação libertária, tem também seus momentos de má-fé, naturalmente presente nas ações humanas.3
A interpretação biográfica, asseverada por parte dos comentadores do filósofo, serve para indicar limites na maneira pela qual a liberdade é vivida; o fato biográfico de Sartre jamais sepreocupar com suas várias mudanças de posição indica claramente em sua vida esse apelo à liberdade. É fato que nenhum homem pode escolher sua vinculação com o mundo, no sentido de que tanto existir como ter tal posição social, econômica, etc., é absolutamente aleatório; mas cada um permanece também absolutamente livre para projetar-se e, assim, efetivar seu ser livre em todas as suas atitudes no...