Notas Sobre A Contemporaneidade Cultural Da Cidade Da Bahia
DA CIDADE DA BAHIA12
Paulo Miguez3
paulomiguez@uol.com.br
O urbanista francês Paul Virilio afirmou, em entrevista concedida em 1997 a um
jornal brasileiro, que a cidade se faz em torno da memória e da cultura (Milan,
1997). Se é esta uma verdade cuja validade aplica-se a qualquer cidade, mais
verdadeira ela ainda se torna quando os olhares estãovoltados para Salvador,
a velha Cidade da Bahia.
Na soterópolis, das sátiras ferinas do nosso Boca do Inferno, o poeta
seiscentista barroco-popular-tropical Gregório de Matos, à percussividade
neobarroca e neotropicalista do mago Carlinhos Brown, a cultura é o “tchan”.
Tradição e contemporaneidade, mesclando memória e inovação, conformam o
quadro da cena cultural baiana. Nos quase trêsséculos e meio que separam o
poeta do timbaleiro, entretanto, são muitas as tramas - quem sabe possamos
dizer, de forma bem barroca, “jeitos de corpo” - que a história e a cultura
reservaram a Salvador.
Para ficarmos só neste século que já vai apagando as suas luzes, temos o
cancioneiro de Dorival Caymmi, a literatura de Jorge Amado e João Ubaldo
Ribeiro, a presença da vanguarda estética naUniversidade Federal da Bahia
durante o reitorado de Edgar Santos entre o final dos anos 40 e o início dos 60,
as revoluções partejadas pelo Cinema Novo de Glauber Rocha e a Tropicália
de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
A marcar atores e cenários da cultura baiana, desde sempre, traços barrocos.
De um barroco que Roger Bastide chamou, acertadamente, de “barroco de
rua”, querendo, assim, menos do queinformar sobre um estilo artístico, afirmar
um “estilo de vida” onde celebração e festa são as marcas dominantes.
Aliás, a rigor, barroco e festa são termos de uma mesma equação. Como anota
o poeta e antropólogo Antonio Risério,
... o barroco é a arte do excesso, da exuberância, da desmesura;
voluptuosa arte das volutas, das máscaras dos arabescos; espaço pleno e
1
Algumas das reflexõespresentes nesse texto foram desenvolvidas inicialmente pelo autor,
ainda na condição de bolsista DCR do CNPq, durante o ano de 1997, no âmbito do projeto
integrado de pesquisa Cidades Estratégicas, Organizações e Desenvolvimento Local, em
curso no Núcleo de Estudos sobre Poder e Organizações Locais - NEPOL da Escola de
a
a.
Administração da Universidade Federal da Bahia, sob a coordenação daProf Dr Tânia
Fischer e financiamento da FINEP e CNPq.
2
Publicado originalmente em Bahia Análise & Dados. Salvador, SEI, Secretaria do
Planejamento Ciência e Tecnologia do Estado da Bahia, v.8, n.1, p. 50-53, jun.1998.
3
Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (FACOM/UFBA) e professor da UFBA.
repleno (horror-ao-vazio), reino de superabundância, transbordamento,
prodigalidade;arte da soma, da sinonímia, da catalogação, da digressão e
do desvio. Barroco = jogo; arte clássica = trabalho (Risério, 1995, p.149)
Pois bem, falemos de cultura baiana falando de festa.
O caráter festivo de Salvador é algo que se perde no tempo. Por exemplo, no
início do século XIX o calendário da cidade registrava nada menos que 35 dias
santos, 18 feriados civis, além dos 50 domingos,isto sem falar nos outros dias
de folga dedicados a comemorações de ocasião (Araújo, 1993).
Não se pode dizer, no entanto, que esse clima de festa ocorreu em céu de
brigadeiro. Pelo contrário. Não foram poucos os obstáculos e reveses que a
farra baiana se viu obrigada a enfrentar ao longo do tempo. A igreja católica
rebelou-se contra o paganismo de suas festividades na metade do século XVIII,passando a adotar um recato de convento em procissão. Os primeiros anos
deste século assistiram à implacável perseguição policial aos batuques
negromestiços que incendiavam a cidade, comandando candomblés e
carnavais. Em anos mais recentes, o regime militar cassou santos e festas
atendendo às necessidades da modernização prussiana do nosso capitalismo,
que não podia compactuar com a...
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