Revista De História

A conquista dos guaranis: guerreiros, padres e xamãs.


"Eu sou o criador de todas as coisas, aquele que fertiliza os campos e castiga com terríveis doenças, os que não creem" . (Miguel Atiguaye)
"Enraiveceu-se cruelmente contra mim, dizendo que havia de me comer (..) para o que mandou chamar vários caciques da comarca, por quem éobedecido já que o tomam por deus" . (Antönio Ruiz de Montoya, sobre Guiraverá)


O conjunto de eventos que se costuma denominar de “conquista da América” foi, na verdade, um processo histórico que apresentou ritmos, dinâmicas e características variadas. Uma das diferenças mais notáveis neste sentido é aquela que se verifica quando comparamos o processo que resultou na conquista dassociedades hierarquizadas e centralizadas (como a dos incas e astecas), com aquele que diz respeito às sociedades nômades de caçadores-coletores. Pode-se mesmo afirmar que o alto grau de mobilidade territorial destas últimas, a ausência de “centros” ou “capitais”, e de um “rei” ou “governante” com autoridade sobre amplos territórios, dificultaram fortemente as ações espanholas, contribuindo para quemuitas delas tenham permanecido à margem dos controles coloniais por um largo tempo. Junto às sociedades de agricultores aldeães, como no caso dos guaranis, o contato com os europeus resultou em um complexo conjunto de ações-reações que transitaram – segundo épocas e circunstâncias distintas - da recepção festiva à luta entranhada, da negociação e construção de alianças, à perseguição e destruição daslideranças com as quais não era possível negociar.


Os espanhóis na região dos guaranis: guerra, negociação e alianças


As notícias das espantosas riquezas proporcionadas pela conquista dos territórios asteca e, depois, inca, estimularam a preparação de empreendimentos que visavam reprisar os sucessos de Hernán Cortez (1458-1547) e Francisco Pizarro (1478-1541). Organizou-seentão, desde Sevilha, uma grande expedição rumo à área que relatos anteriores indicavam como sendo a entrada da “Serra da Prata”, a qual foi a responsável pela primeira fundação (1536) de Buenos Aires. A fome e a hostilidade dos índios determinaram que a povoação fosse abandonada, tendo o grupo de remanescentes dela navegado pelo Rio Paraguai para, depois de um período de intensos conflitos com osíndios guaranis da região, fundar a cidade de Asunción (1537).


Depois da tentativa inicial de impedir a instalação dos espanhóis, as lideranças indígenas guaranis estabeleceram com os recém chegados uma relação baseada na noção de parentesco. Isto é, honrava-se aos aliados conferindo-lhes hospitalidade, alimentos, esposas e ajuda para o trabalho. Em troca, passavam a contar com os espanhóis -e suas armas de fogo - nas investidas contra inimigos tradicionais, como os agaces e os guaicurus. Esta “aliança” nunca deixou de ter bases muito frágeis, mesmo porque esteve fundada em compreensões muito distintas do que esperavam dela os dois grupos envolvidos. Em pouco tempo ela seria rompida devido à crescente pressão sobre a capacidade dos guaranis fornecerem alimentos para grupos cada vezmaiores de colonos.


O serviço encomendado e as rebeliões guaranis: de amigos à vassalos.


O apoio dos guerreiros guaranis aos espanhóis não apenas aumentava a sua força numérica, mas permitia justificar moralmente a violência das expedições contra outras tribos. O mercenário alemão Ulrico Schmidl (1509-1581), um dos participantes destes eventos, por exemplo, afirmou: “os Carios sãoum povo que entende que devem morrer todos aqueles com quem se enfrentam em guerra, eles não têm compaixão com nenhum ser humano”. De fato, a aliança com os brancos trazia elementos estranhos às funções sociais da guerra na sociedade indígena tradicional. A mobilização dos guerreiros e os deslocamentos faziam-se mais freqüentes e duradouros, e logo os guaranis “amigos” viram-se envolvidos em...