A hora da estrela, de clarice lispector
O VALOR ESTÉTICO EM A HORA DA ESTRELA
Salvador
2010
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se inscreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa aanalogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.
(Clarice Lispector)
Clarice Lispector era uma das vítimas das “patrulhas ideológicas”, expressão cunhada pelo cineasta Carlos Diegues para definir a pressão exercida por determinados ativistas intelectuais de esquerda sobre os artistas que não vinculavam suas obras diretamente a umaluta engajada contra a ditadura militar, recebendo desses o rótulo de “alienada”.
Em resposta a eles, Clarice cria A hora da estrela, em que seu engajamento vai mais além, configurando-se como um engajamento poético: “engajamento” pela preocupação com a tematização da série social e política através da oprimida Macabéa; “poético” por não se limitar a exprimir conteúdos de ordem política, comofizeram as obras representantes do engajamento social. Ao contrário do “engajamento social’, que se dá principalmente no conteúdo e permanece restrito aos contextos de ordem política e social, o engajamento poético caracteriza essa obra que, em apresentando igualmente um comprometimento com as questões políticas e sociais de um determinado período histórico, revela uma problematização mais ampla darealidade a partir dos próprios meios poéticos de expressão. Um engajamento expresso, ao mesmo tempo e de modo inseparável, no conteúdo e na forma.
O compromisso de Clarice era com a palavra, com o estético, com a “força poética”: ao invés de relegar a preocupação com o questionamento da linguagem a segundo plano, construindo obras centradas na referencialidade, é na problematização do processo deescritura, mais do que no simples enfoque da vida miserável de uma imigrante nordestina, que se encontra o engajamento poético da escritora.
Em A hora da estrela, ao empreender um criticismo social, Clarice procurou expressar os problemas sócio-políticos do Brasil a partir de uma ótica textual: linguagem ficcionalizada pela operação incessante da própria linguagem literária. A linguagem assumeexplicitamente o lugar de tema da narrativa, fazendo com que a crítica da realidade social e política presente na obra seja percebida como crítica da linguagem. É transformando “a linguagem da realidade em realidade da linguagem” que o romance vai se engajar no mundo.
Ao questionar os estatutos narrativos tradicionais, ao duvidar da capacidade de sua própria escritura em apreender o real, a autoratranspôs para a tessitura do texto o impasse do escritor contemporâneo diante das mazelas brasileiras, caracterizando o que a prosa moderna é para Benedito Nunes: “desajuste entre a realidade e a sua representação, desajuste em suspenso ou recobrado por uma nova articulação, estampado na forma ou na estrutura da obra’.
Com A hora da estrela, um livro que os leitores apressados (e iludidos pelaarmadilha que Clarice lhes arma) chamam de “realista”, ela, na verdade, debocha daquilo que dela sempre se disse – que seria uma escritora enigmática e intimista, fechada em si mesma e incapaz de voltar-se para o real. Com sua Macabéa, Clarice se lança sobre a vida. Clarice traz, portanto, um metarromance, que vai além da manifestação de um compromisso imediato de um escritor com a crítica de umquadro social vigente, propondo uma reflexão mais ampla e complexa: a relação da estética com a ética, relação esta que transcende épocas e lugares.
Clarice também confunde os que poderiam acreditar que A hora da estrela é uma obra tipicamente autobiográfica, pois a forma como ela se insere na obra é através de um processo de transfiguração de identidades. Ela cria um segundo escritor, Rodrigo S....
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