A má-fé institucional da justiça penal e a reprodução da desigualdade
PORTO ALEGRE, 11 A 14 DE NOVEMBRO DE 2008
GT: ORGANIZAÇÕES E SEGURANÇA PÚBLICA
A MÁ-FÉ DA JUSTIÇA PENAL E A REPRODUÇÃO DA DESIGUADADE SOCIAL
AUTORA: PRISCILA DE OLIVEIRA COUTINHO
A má-fé institucional da justiça penal e a reprodução da desigualdade social
Priscila Coutinho
ODireito, é preciso examiná-lo, creio eu, não sob o aspecto de uma legitimidade a ser fixada, mas sob o aspecto dos procedimentos de sujeição que ele põe em prática. Michel Foucault
Introdução Um réu negro, pobre e paraplégico é levado, na cadeira de rodas, até a sala de audiências. O juiz ordena que ele conte sua versão sobre o fato que é objeto da denúncia. O réu o faz, narra o fato preocupado emdemonstrar que sua condição o impede de cometer o crime do qual está sendo acusado: “os policial me abordaru, me botaru junto(...) me tiraru da cadera, me jogaru no chão, me bateram aqui nas costas, me bateram no rosto e me levaram pra 25 DP. Aí chegô lá e começaru: 'oh rapá, se tu num falar vai piorar o seu caso'....aí eu pô doutô, pô chefe, tô contando a verdade pro sinhô, que estado eu tenho praficar roubando, o sinhô falou pra mim que o muro da casa era alto, como é que eu vou pular o muro? Aí ele falou: 'ah rapá, isso é história pra boi dormi, onde é que tão os outros?'(...)”. O juiz não ouve e, impacientemente, sem dirigir o olhar ao “elemento”, ordena que ele pare de falar. A linguagem indisciplinada e profana do réu o incomoda. Após alguns segundos de silêncio, o réu se dirige aojuiz: “Doutô, doutô meritíssimo, se o senhor pudesse dá uma autorização pra me mandá pro hospital, porque, pô, lá no xadrez lá são 79 lá...”. O juiz interrompe. “O que você tem, tá doente?.” O réu responde: “Não, pra mim dá uma evacuada tem que
ficar me arrastando no chão, pra tomá banho...lá eu tenho dificuldade pra certas coisa”. O juiz retruca: “Isso é assunto de médico, não é assunto de juiz.Se o médico disser que você precisa ser removido, você será removido, fora disso, não”. Enquanto o réu esfrega as mãos, demonstrando um medo nervoso, e engole seco, aceitando a afirmativa do magistrado, alguém aparece atrás da cadeira de rodas, tocando-a a fim de chamar a atenção do juiz. O magistrado, então, pergunta ao réu o que este havia falado todo o tempo: “Você foi preso na cadeira derodas?”. Ele não tinha percebido que estava interrogando um paraplégico que havia sido denunciado pelo delito de roubo com escalada de muro. Após ter sido informado do traço mais marcante daquele corpo submetido ao seu julgamento, o juiz conclui: “A defensora pública vai analisar essa tua situação e pedir os direitos que ela acha que você merece.” A cena acima descrita é de uma das audiências exibidasno documentário “Justiça”, de Maria Augusta Ramos. O documentário mostra, de forma absolutamente objetiva, o cotidiano da justiça penal, a justiça, por excelência, da ralé estrutural. Algumas audiências mostradas no referido documentário e em outro, “Juízo”, da mesma diretora, nos servirão de exemplo neste texto. Pretendemos aqui responder algumas questões primordiais para a
compreensão dosabsurdos e contradições presentes na prática da justiça penal, dentre elas: como explicar o descompasso entre o discurso de diplomas legais, baseados em princípios de valorização dos direitos humanos, e a prática que contradiz cotidianamente esses discursos? Por que essa contradição é reproduzida? Aplicadores do direito são capazes de admitir o perigo de vida a que está sujeito um adolescente numacasa de internação e justificar a internação com o discurso da necessidade de ressocialização do sujeito desviante. Como um paradoxo tão flagrante pode ser dissimulado? Por que ele
deve ser dissimulado? Mostraremos que essas contradições só poderão ser compreendidas se ultrapassarmos a tradicional separação entre “Estado” e “sociedade”. Quando pensamos no que é o Direito, o pensamos como algo...
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