Piores Que Bestas Feras
Protasio Paulo Langer
Na historiografia da América colonial, os Chiriguano são reconhecidos como um dos grupos mais exitosos no enfrentamento defensivo e ostensivo de dois poderosos impérios: o incaico e o espanhol.1 A resistência armada dos Chiriguano perpassou todo o período colonial e sófoi derradeiramente aniquilada em 1892, pelo exército da Bolívia. Na primeira metade do século XVI, quando da chegada dos espanhóis, esse grupo ocupava uma área de aproximadamente 100.000 km² na atual Bolívia, numa zona de transição entre o Chaco e os Andes – Pie de Monte y subandina. No presente trabalho pretendemos analisar o imaginário do Inca Garcilaso de la Vega sobre os Chiriguano. Esserecorte tem em vista que o referido cronista foi partícipe indireto das tentativas dos Inca em conquistar esse grupo; ele também foi contemporâneo dos empreendimentos militares do vice-rei Francisco de Toledo contra aquele império. Como filho de uma nobre mulher inca, conheceu os relatos orais sobre as conquistas militares do seu povo. Como filho de um conquistador espanhol teve uma esmerada formaçãohumanista cristã e, desde a sua juventude até o fim da vida, cultivou profundo interesse pela história inca e pelas vicissitudes da colonização espanhola no Peru. Considerando que a obra de Garcilaso, Comentarios reales de los Incas (1609), tornou-se um clássico da literatura hispano-americana, nossa atenção incide sobre a capacidade do autor de constituir um imaginário antropológico que lhepermitiu dialogar com dois universos simbólicos tão díspares quanto o inca e o espanhol. Neste sentido, transitando intensamente num mundo partido em dois polos, a obra de Garcilaso é perpassada por um imaginário sincrético em que a tradição indígena é, por um lado, filtrada pela literatura humanista cristã, e por outro, “serve de chave para melhor compreender o mundo do Renascimento”.2 Essaambivalência se manifesta ao longo de toda a obra, inclusive na descrição dos Chiriguano. Em se tratando dos povos chamados bárbaros, buscaremos perceber em que medida Garcilaso tece uma coincidência entre o imaginário inca e o humanista cristão, uma vez que tanto para espanhóis, quanto para os Inca, os Chiriguano eram um obstáculo à expansão política, um avesso de humanidade e, portanto, um alvo deconquista. Buscamos também compreender de que maneira a descrição dos Chiriguano serviu de pretexto ou ensejou um enaltecimento da história inca e uma crítica velada a governantes espanhóis sem, contudo, afrontar os fundamentos da colonização ibérica. Essas questões constituem o foco do nosso olhar sobre a crônica do Inca Garcilaso de la Vega. A noção de imaginário que permeia nossa reflexão é a de umsistema de ideias/imagens, que participam do processo de tradução/representação da “realidade” que exorbita as fronteiras da experiência e dos encadeamentos “racionais”. Este sistema, por um lado, atua sobre o real ao lhe atribuir significados e, por outro, é constantemente atualizado e reformulado pelas impressões que a experiência oferece aos sentidos e que, por sua vez, realimentam o sistema deideias/imagens representativas.3
O Inca Garcilaso e o vice-rei Toledo
A biografia do autor revela aspectos essenciais para a compreensão crítica da sua narrativa. O Inca Garcilaso de la Vega era filho do aventureiro/conquistador Sebastián Garcí Lasso de la Vega Vargas que, a partir de 1534, participou da conquista do Peru e das guerras entre os próprios conquistadores, ao lado de FranciscoPizarro. Sua mãe era Chimpu Ocllo, uma princesa incaica que, depois de batizada, passou a se chamar Isabel Suárez. Essa princesa era neta do imperador inca Tupac Yupanqui (14711493) e prima de Huáscar que morreu na disputa do trono do império com seu irmão Atahualpa.
Topoi, v. 11, n. 21, jul.-dez. 2010, p. 5-22.
5
“Piores que bestas feras”: Garcilaso de la Vega e o imaginário hispano-inca...
Regístrate para leer el documento completo.