Conto Contemporane

0 ANJO DOENTE NO INFERNO DE BOSCH Luiz Felipe Guimaraes Soares
Mestrando em Literatura Brasileira, UFSC

"Quem 8 sdbio e artista E igualmente religioso! Quem nem sdbio e artista d, Esse que seja religioso!" Goethe 1

1. UMA APROXIMACAO Boa parte das leituras da obra de Augusto dos Anjos, ainda que corn profundidade indiscutivel, permanece prOxima ao universo do autor. Cavalcanti Proenca, porexemplo, examina minuciosamente seu trabalho de composicao2 ; Ferreira Gullar o relaciona as condicOes da vida e da academia nordestinas e cariocas as vdsperas do modernismo brasileiro3; Jose Paulo Paes o aproxima do momento cultural europeu de sua dpoca, para considers-lo exemplo do art nouveau na literatura brasileira4 . No inicio do seculo foi discutida a qualidade de seus poemas, em meio aoque Carpeaux chamou de "uma fase especialmente infeliz da evolucdo intelectual do Brasil, (...) uma epoca de eclipse do sol, de trevas ao meiodia" 5 . Orris Soares foi um dos que prontamente defenderam seu valor enquanto poeta, embora sentindo necessidade de the perdoar a irreverencia dos termos cientificos6 . Posteriormente, alguns criticos como Alvaro Lins, Antonio Houaiss, Francisco de AssisBarbosa e o prOprio Carpeaux se dedicaram a ressuscitar a "verdadeira grandeza" de Augusto7. Entretanto, o alcance de sua poesia pode it muito alem desse universo, no espaco ou no tempo. A matematica de seus versos pode relaciona-los a mOsica pitageorica; a filosofia que os move, fundamentada no positivismo e, por conseqUencia, no darwinismo, no determinismo e no monismo de Haeckel, pode criarleituras a partir de consideracties sobre a metafisica, recorrendo a dilemas entre Het-kilt° e Parmenides, Plata() e AristOteles, Leibnitz e Spinoza8 . Do mesmo modo, existem elementos que podem aproximar Augusto das artes plasticas do period() gOtico final. Vejamos, por exemplo, os versos seguintes:

Anudrio de Literatura 2, 1994, pp. 11-32

0 Anjo Doente... E uma tragica festa emocionante! Abacteriologia inventariante Toma conta do corpo que apodrece E ate os membros da familia engulham, Vendo as larvas malignas que se embrulham No cadaver malsao, fazendo inn s. (MonOlogo de uma sombra (65), 14)9

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Logo numa primeira leitura, eles lembram imagens da obra de Hieronimus Bosch, pela estranheza, pela morbidez ou pela escatologia. A "tragica festa emocionante" das bacterias lembra aatividade dos demenios de formas variadas, e cruelmente bem humorados, do inferno boschiano, sempre esmerados no fazer sofrer as almas. 0 presente trabalho pretende aprofundar essa aproximacao, examinando os processos construtivos de ambos os autores e as imagens correspondentes. A analogia parece comecar ja nesses processos: Augusto e Bosch fragmentam suas composicaes e as preenchem com figurasmais ou menos reconheciveis, e mais ou menos estranhas, como veremos adiante. Essas figuras sao colhidas nos universos concretos de ambos os autores. Bosch as toma da cultura popular medieval, prOdiga em monstros e glutOes; Augusto as busca na ciencia do seculo XIX, principalmente nas descobertas, para ele, recentes da biologia. Se ha ressalvas na aproximacao, como veremos, ela pode ser feita pordiversas vias, nao apenas pela iddia da danacao e da decomposicao festivas ou pelo carater mOrbido ou pela viscosidade escatolOgica, mas tambem pela verticalidade do movimento dos personagens ao morrer, pelo use de elementos transparentes deformando a luz em ambas as obras, pela narratividade, pelas formas de inclusao dos autores, pelos elementos decorativos. Veremos tambem que o paralelismo seestende a singularidade das posicOes de ambos em relacao ao momento cultural de suas epocas, urn as vesperas da Idade Moderna na Europa, outro antecipando a seu modo o Modernismo no Brasil.

2.0 PINTOR Hieronimus Bosch viveu durante o period() historicamente apontado como de transicao entre a Idade Media e a Idade Moderna, e nao seguro enquadrã-lo rigidamente como medieval ou como renascentista....