Legitimidade Política E Democracia Em O Liberalismo Político

Legitimidade política e democracia em O Liberalismo Político, de John Rawls

Flávio Marques Prol

Esse texto tem três pretensões: (i) apresentar a definição de legitimidade política presente na obra O Liberalismo Político, de John Rawls; (ii) a partir do mesmo texto, expor como as sociedades contemporâneas podem manter esta pretensão de legitimidade e como ela se relaciona com a democracia;(iii) indicar três objeções à legitimidade política proposta por LP, no modo em que foram apresentadas por Jürgen Habermas, e possíveis respostas a elas.
Nas palavras de Rawls, a principal questão filosófica do LP poderia ser traduzida nos seguintes termos:

“como aqueles que professam uma doutrina religiosa que se baseia na autoridade religiosa, por exemplo, da Igreja ou da Bíblia, podemtambém subscrever uma concepção política razoável que ofereça sustentação a um regime democrático justo?” (Rawls, 2011, p. XLI)

Assim, a empreitada teórica em LP é a de estabelecer como pessoas que professam diferentes doutrinas, religiosas ou não, irreconciliáveis entre si, podem defender um regime democrático justo, por meio de uma concepção política razoável. Para isto, Rawls empreende duastarefas simultâneas: (i) especifica o que pode ser entendido como um “regime democrático justo”, desenvolvendo os princípios da justiça teoricamente; (ii) define como uma sociedade que queira ser justa pode se manter assim, considerando o fato do pluralismo (Rawls, 2011, p. 157).
Nessa segunda parte, especialmente, Rawls define como o exercício do poder político em uma sociedade democrática deve serjustificado perante outros cidadãos, estabelecendo o que chama de princípio liberal de legitimidade. Para clarificar o que ele entende por este princípio, diferenciarei inicialmente os conceitos de concepção política razoável e de doutrina abrangente do bem. A definição de concepção política razoável de justiça permitirá entender como o critério da reciprocidade traduz o princípio liberal delegitimidade (seção 1).
Todos esses conceitos, definidos em um grau elevado de abstração, permitirão esclarecer como Rawls entende que a legitimidade liberal é possível de ser sustentada em sociedades divididas por praticantes de doutrinas irreconciliáveis entre si. A ideia de razão pública indica a solução encontrada em LP para defender que, a despeito das doutrinas abrangentes nem sempre seremliberais, seus praticantes podem participar ativamente de uma cooperação social organizada segundo uma concepção política liberal e razoável (seção 2).
Por fim, serão apresentadas três críticas de Habermas ao modelo teórico de Rawls (seção 3). Em primeiro lugar, apresentarei sua crítica em relação ao lugar do conceito de consenso sobreposto naquele modelo, apontando que ele talvez não seja fundamentalpara o fim teórico de justificar uma concepção política razoável.
Em segundo lugar, indicarei a crítica habermasiana à concepção de democracia de LP, em especial sobre a relação entre liberdade dos antigos e liberdade dos modernos, nos termos de Benjamin Constant. Não acredito que a crítica proceda. Ela parece ter se originado de uma incompreensão sobre a importância da democraciaconstitucional em LP.
Por fim, sugiro qual pode ser a principal discordância entre Habermas e Rawls. Ela está relacionada com o lugar a partir do qual cada teórico retira a normatividade de suas teorias. As ideias de construtivismo político e de reconstrução das condições ideais de fala a partir de uma teoria da ação comunicativa expressam esta diferença, ainda que Habermas tenha classificado suasdiscordâncias como restrições “dentro dos limites de uma briga de família”.

1. Concepções políticas razoáveis e legitimidade política

Para Rawls, uma doutrina abrangente do bem se caracteriza como uma crença a respeito de como a vida deve ser vivida, em todos os aspectos. Uma doutrina abrangente, portanto, define um bem a ser perseguido. Aqueles que a professam tendem a organizar sua vida em...