O Livro Do Judeu Errante

O LIVRO DO


JUDEU ERRANTE


José Eduardo Lopes

























A lenda e a memória dos homens fixaram-me o nome de Ahasvero, o Judeu Errante, e este é o meu livro, colagem de palavras sangradas na berma dos caminhos, um almário sem nexo.
! Sigam-me! As minhas pegadas ainda estão frescas, pisem-nas e dêem testemunho de mim.I

Ninhos e Refúgios
(Equinócio da Primavera)


Marta, de pele perlada de orvalho, procuraste guarida nos pólipos minerais da memória entrando em mim pelas pálpebras do sonho, choras e ris como da última vez em que te vi, na praia de salitre do lago de Genesaré, quando te amei docemente sobre o areal salgado e amanheci dentro de ti, num lilás idílio decelulóide. a recordação do teu corpo ainda palpita nos neurónios sanguíneos da minha carne, frémito arqueológico e tumular.


o judeu chamado Cristo foi o homem mais só do mundo. era verdadeira e pungente a afeição que tinha pelos outros, mas nada podia receber, apenas dar, despojar-se continuamente do seu amor e da sua bondade. a úlcera mais dilacerante do seu coração de homem foi o amor negado de Mariade magdala, ela desabrochou na sua vida como o seu Princípio Feminino, extensão e complemento de si, como a carne e a pele, ou a parte negra dos olhos. Cristo desejou sem solução o amor de Maria de Magdala, embebeu-se do seu afecto e da sua dedicação e desejou estar imerso entre as suas coxas recendendo a perfume de nardo e acariciar aquela carne meiga com as suas mãos frementes. reclamado pelasprofecias do seu destino, aprisionou em si todo o bravio desejo como se retivesse os humores das glândulas e estancasse o sangue que lhe corria nas veias. a mim, Ahasvero, que procurava e procuro o Filho de David, comoveu-me o extravasante amor das suas palavras e o perene sofrimento que transparecia no seu rosto seco e severo de asceta. estive ao seu lado, escutando em segredo os seus lamentos eas suas dúvidas, e com a minha amizade atraí sem o desejar, a inveja dos seus irmãos e dos seus discípulos. foi a mim que Cristo transmitiu na minha casa de Betânia, a chave das letras do nome secreto de Deus, o único e verdadeiro tetragrama, Palavra de poder gerada no Templo da Jerusalém Celeste, e que só muitos poucos conseguiram como eu albergar no seu intimo sem que a vida lhes fugisse pelosporos ou a loucura varresse as suas mentes como um vento ígneo calcinando as searas de trigo.
Nos tempos que se seguiram a essa semi-revelação, a Palavra oculta dentro de mim rebelava-se em manifestações que eu não conseguia reprimir. Eu despertava do sono a levitar a doze palmos da enxárcia onde dormia, e quando andava entre as pessoas, os meus ombros aureolavam-se de cores luminescentes enasciam flores na silhueta das minhas pegadas. as minhas mãos toscas, calosas e gretadas adquiriram o espantoso poder de operar prodígios. Seguido e aclamado pelas estupidez das gentes eu ia atribuindo esses feitos à influência do Cristo, até ao dia em que me cruzei no caminho dos seus discípulos. Que cuspiram sobre mim e quiseram apedrejar-me mas um deles, o mais compassivo, ordenou-me que abandonasseos milagres e me exilasse entre os gentios das nações longínquas, aguardando a hora de transmitir a palavra de poder. A Palavra amainou dentro de mim, aquietada pela voz bondosa do mais amado de entre os discípulos, e no mesmo dia iniciei a minha diáspora, deixando Marta na nossa casa de Betânia, e fugindo da Judeia. A Palavra em mim deteve a decrepitude dos tecidos e do espírito, conferindo-meuma juventude da qual não mais me libertei. Amargurado pela finitude das pessoas amadas, que definhavam e enfraqueciam diante dos meus olhos angustiados, fiz da procura do conhecimento o esteio da minha existência, que se converteu naquilo com que muitos filósofos e sages sonharam: viver indefinidamente numa longa Primavera sem doenças nem maleitas, colhendo os frutos da sabedoria e recriando-os...